O interesse do público pelas notícias sobre crimes está em ver a punição por crimes que desejamos ou aceitamos cometer um dia .
Para Freud, a repressão dos instintos delitivos por meio da moral não
os destrói. Esses instintos apenas ficam guardados no inconsciente por
um sentimento de culpa, uma tendência a confessar. Ao ver um programa
policial, haveria, segundo Freud “[...] uma compensação às restituições que alguém coloca ao próprio sadismo”. Em Totem e tabu,
afirmou que a tentação de repetir o ato do transgressor exigia o
isolamento e a quarentena de quem violava um tabu. Desse modo, toda
reação punitiva tinha como pressuposto, entre os membros do grupo,
impulsos idênticos aos proibidos. Para Mead, sob outro enfoque, mas
chegando aos mesmos resultados de Freud, a hostilidade em relação aos
criminosos contribui para aumentar a solidariedade e o amor dos cidadãos
não delinqüentes . Isso implicaria um
reforço coletivo da moralidade. No entanto, por trás desse fundamento
racional do castigo, há sua verdadeira função: “a gratificação pelas agressões desejadas, porém reprimidas” .
O caso do professor que matou a aluna e ex-namorada parece contrariar
essa tese. A maioria do povo não admite sequer matar alguém, quem dirá
atirar três vezes contra sua “alma gêmea”. Além disso, todos buscam
distanciar-se do assassino, seja por sua visão equivocada do amor como
“posse”, seja por seu aparente perfil “psicopata”.
O curioso é que, para os maiores filósofos da humanidade, o amor
depende da posse ou está relacionado ao que sentimos quando nos
apoderamos de algo. Schopenhauer é explícito ao relacionar amor com
posse. Para esse filósofo, o amor é uma ilusão subjetiva, um estratagema
para que a natureza consiga atingir seu fim: a multiplicação da
espécie. Isso se confirmaria pelo fato de que o apaixonado não deseja
simplesmente a correspondência amorosa: “[...] mas a posse, isto é, o gozo físico” .
A busca inconsciente dos enamorados pela procriação também se
confirmaria pelo fato de os homens gostarem de mulheres com seios
grandes (mais leite para as crias) e também pela atração entre os
opostos (maior mistura de material genético, criando espécies mais
fortes) .
Na obra O banquete, de Platão, sete amigos tentam descrevem o
amor. De ressaca por uma noitada anterior, resolvem beber apenas o
suficiente para explicarem qual o melhor conceito sobre o “amor”. Não
importa descrever a versão de cada um. Até porque Platão considera
sofismas as seis primeiras análises. Endeusam o sentimento “amor”, mas
não o explicam. Só havia um filósofo no recinto, aquele que estava
realmente à procura da verdade . Era
Sócrates. Ele teria ouvido a verdade sobre o amor de uma mulher de
Mantinéia, Diotima. Para ela, o amor é fruto da conspiração da Pobreza
de ter um filho com Recurso, filho de Prudência. Depois de um banquete
em homenagem ao nascimento de Afrodite, banqueteavam-se os Deuses.
Recurso exagerou na dose e acabou cochilando no Jardim. A Pobreza
aproveitou-se da situação e teve um filho com Recurso, o Amor. Esse
filho vive num extremo. Será para sempre pobre em homenagem a mãe. Mas
puxou o pai e, portanto, sabe o que é belo e bom. Está sempre à procura
disso, mas nunca consegue. Daí porque o amor é necessidade, é desejo.
Isso só existe, segundo Sócrates, quando não temos. Afinal, somente se
deseja: “[...] o que não está à mão nem consigo, o que não tem, o que não é ele próprio e o de que é carente”. Por isso Romeu e Julieta se amam, porque nunca podem ter um ao outro. O obstáculo é a rixa entre as famílias. Em Tristão e Isolda,
o cavaleiro chega a morrer de amor ao acreditar na impossibilidade de
ter a Princesa em seus braços. Aqui o empecilho que sustenta o amor
entre os pombinhos é a diferença entre classes sociais. Daí porque
consideram o amor platônico um sofrimento, o eterno desejo por aquilo
que não se tem.
O que importa considerar é que Sócrates não diferencia, em essência, o
amor entre seres humanos do amor pelas coisas. Daí aproximar o
sentimento de amor ao de posse, à necessidade de ter. Nesse sentido, é
amor tanto o desejo de um jovem por uma Ferrari quanto pela mulher que o
despreza. Nos dois casos, há desejo pelo que não se tem. O afeto até
seria maior pela Ferrari. Afinal, quanto maior é a impossibilidade de
ter, maior o desejo. No segundo caso, pelo menos já se tem a amizade da
garota, falta uma dose de coragem e competência para usar as palavras
certas para acertar o coração da donzela. Da Ferrari, tem-se somente um
pôster. O que faz Sócrates é apenas graduar em termos de qualidade o
amor. Seria próprio dos jovens, segundo ele ,
desejar coisas/corpos bonitos, enquanto os mais velhos teriam interesse
em almas belas. No entanto, em ambos os casos, há necessidade de ter,
e, portanto, amor.
O tratamento do amor desvinculado da posse é atribuído sem razão ao gênio de Aristóteles. Isso porque, na Ética eudemeia ,
o autor afirma que amar é regozijar-se. Nesse sentido, amar seria
simplesmente alegrar-se com a existência do outro. André Comte,
conferencista na Universidade de Paris, esclarece o equívoco. Segundo o
autor, quando Aristóteles conceitua o amor dessa forma emprega o termo
grego phílis – que quer dizer amizade – e não eros – o amor erótico. O primeiro termo descreveria: “o amor entre os pais e os filhos, ou entre os filhos e os pais ”. Seria o amor por aquele que não nos faz falta: “a quem com compartilho a sua vida, e ele(a), a minha” . O termo philis também
seria adequado para descrever o amor entre as pessoas casadas, aos
companheiros. Já que, segundo André, o amor erótico não sobreviveria ao
casamento. Não obstante, o que importa é
que Aristóteles não divergia de Sócrates quanto ao conceito de amor
erótico e sua vinculação irremediável à idéia de posse.
Ainda segundo a concepção socrática de amor, é preciso distinguir o
distanciamento voluntário e involuntário entre o sujeito e o objeto de
desejo. Só assim se desmistifica o fato de matar por amor. O
amor-erótico está sempre entre os extremos, entre a ignorância do outro
ao seu conhecimento total. Aquele que não conhece não pode amar,
tampouco aquele que compreende integralmente o outro. É preciso criar
fantasia sobre o ser amado, daí a figura do príncipe encantado. Quando ele morre, acaba o amor. A canção de Claude Nougaro (Onde fica o Sena?) ilustra bem isso. Segundo ele: “[...] só que existe o tempo/ e o momento fatal/ em que o marido malvado/ mata o príncipe encantado”.
Para que permaneça o amor, deve haver sempre a vontade, o desejo de
possuir, de conhecer o objeto do desejo. Portanto, a distância entre o
apaixonado e o objeto do desejo deve sempre existir. Mas a aproximação
deve sempre ser buscada, ainda que isso diminua o amor. Quem aumenta a
distância voluntariamente até aumenta o amor, mas não age em razão dele.
Outros são os motivos de quem mata supostamente por amor. Pode ser o
egoísmo de não querer o objeto do desejo com outra pessoa ou até mesmo a
ânsia de acabar com o sofrimento gerado pelo amor platônico. O prazer
gerado pelo sexo, o total abandono do “eu”, implica o desejo da eterna
repetição desse estado livre de preocupação.
Daí a dependência pelo corpo, pelo físico. A consciência dessa
perturbação, de que pode perder o objeto de desejo por investidas de
terceiros, chama-se ciúme. Segundo Krishnamurti,
nele existe sofrimento, ódio e violência. Além disso, a necessidade de
repetir experiências com o objeto do desejo, e a consciência dessa
impossibilidade – como um “pé na bunda” bem dado –, gera o sofrimento do
amor platônico. Daí o alívio sentido pelos assassinos apaixonados
quando extinguem o objeto de desejo.
A intensidade com que esses sentimentos vis se manifestam nos autores
de crimes bárbaros sugere a tese de que, nesses casos, haveria um
desvio comportamental no agente, uma tendência inata para cometer
crimes, um psicopata. A professora Ana Beatriz, Psiquiatra e a autora do best seller “mentes
perigosas: o psicopata mora ao lado” defende a existência de indivíduos
com personalidade voltada ao crime. Segundo ela, a psicopatia não é uma
doença mental. O ato criminoso praticado por esses indivíduos desviados
é fruto de : “[...]um raciocínio frio e calculista combinado com
uma total incapacidade de tratar as outras pessoas como seres humanos
pensantes e com sentimentos”. Elenca
diversas características comuns aos psicopatas. Segundo a autora, o
indivíduo com personalidade desviada, um criminoso em potencial, é
espirituoso e divertido, não se constrange quando desmascarado com suas
mentiras, tem uma visão narcisista e super valorizada de seus valores e
sua importância, além de outras dez características.
Para Michel Foucalt, o conceito de psicopata é historicamente demarcado, surgindo com a ascensão da burguesia. Segundo ele, o conceito de psicopata implica dobrar o delito com a criminalidade. Com isso o exame psiquiátrico busca:
“[...] toda uma série de outras coisas que não são o delito mesmo, mas
uma série de comportamentos, de maneiras de ser que, bem entendido, no
discurso do psiquiatra, são apreendidas como a causa, a origem, a
motivação, o ponto de partida do delito”.
Pesquisar as causas do delito não fazia sentido até o fim do período
monárquico, em que não havia equivalência entre a pena e o dano
produzido. O crime nessa época não atingia os interesses da sociedade,
não representava uma quebra do pacto social. Por menor que fosse,
representava uma insurreição contra o soberano.
Já o crime monstruoso era anulado em rituais de Soberania, que
reconstituía em detalhes e com mais perversidade o próprio ato
criminoso, anulando-o. Daí afirmar Foucaut que, no período monárquico: “[...] não há mecânica do crime que seria da alçada de um saber possível; não há mais que uma estratégia de poder, que exibe sua força em torno e a propósito do crime”. Prova disso é que a criminologia surgiu apenas entre o fim do século XIX e começo do século XX.
O conceito de Psicopata foi criado sob uma aparente racionalidade,
para satisfazer os interesses da burguesia. Para Foucalt, a burguesia
não apenas ascendeu ao poder. Mas inaugurou uma nova forma de exercê-lo.
Segundo ele, essa nova arqueologia permitiu a um só tempo: “[...]
majorar os efeitos do poder, diminuir o custo do exercício do poder e
integrar o exercício do poder aos mecanismos de produção”. Tudo isso sob uma aparente racionalidade das instituições. O ideal de que a pena deveria corresponder aos danos
causados à sociedade permitia economizar despesas com a punição. O
atestado de psicopatia permitia aumentar os efeitos do poder, pois punia
o criminoso por atos cometidos bem antes do crime e sem qualquer
relação aparente com ele, em clara ofensa ao princípio da legalidade.
Afinal, como alerta Foucalt, lei nenhuma proibia ser o indivíduo imoral
ou amar mais a si que aos outros. O conceito de psicopata seria uma técnica de normalização, a
imposição de um padrão ético de conduta. A psiquiatria estava avançada,
nessa época, e se sabia que os laudos psiquiátricos indicando uma
personalidade voltada ao crime eram fajutos, risíveis, grotescos.
Foucalt demonstra casos em que a
psicopatia era afirmada a partir do gosto do criminoso por jogos e
automóveis. Não é coincidência que o homem normal seja conveniente ao
burguês. Ele se casa antes dos 30 anos, tem filhos, constitui família e é
feliz como empregado.
Como foi possível que a psicopatia se infiltrasse no Judiciário, já
que esse conceito atenta contra o princípio da legalidade, outro ideal
burguês? A ideia de colocar um psiquiatra para constatar a psicopatia
dava autoridade ao laudo, pouco importando o grau de certeza científica
da afirmação. Por outro lado, o ideal burguês do princípio da persuasão
racional das decisões judiciais permitia que os juízes desprezassem o
laudo, decidindo a normalidade do réu a partir de sua convicção pessoal.
Na verdade, sempre homologavam o parecer técnico do Psiquiatra. No
entanto, o sistema permitia a inserção de um médico que seria ao mesmo
tempo, nas palavras de Foucalt, médico-juiz,
sem tirar o poder do Juiz de Direito. A afronta à legalidade, ao punir o
criminoso por atos anteriores ao delito, estava justificada pela
aparente racionalidade do laudo médico, proveniente de um saber
relacionado às ciências naturais.
Atualmente, a psicopatia também tem servido aos interesses dos donos
do poder. O conceito de psicopata ganhou autonomia jurídica. Com isso, o
médico-juiz sai de cena e o Juiz de Direito passa a determinar por si
só quem é psicopata. No Código Penal (art. 59), o juiz deve determinar a
pena-base para o delito, devendo considerar para efeito de cálculo a personalidade voltada ao crime. Isso permitirá estigmatizar o autor do crime, etiquetá-lo na linguagem do labelling aproach
(moderna escola criminológica). Considerar o autor do crime um anormal
também fundamenta o caráter reeducativo da pena, sua função corretiva
(prevenção especial). O que implica, na prática, punir o criminoso além
dos danos causados. Sem contar que a
etiqueta é feita sob o molde burguês. Isso permite estabelecer um
benefício aos burgueses incompetentes, que são presos em suas
empreitadas. Os criminosos do “colarinho branco”, por exemplo, não tem
sua pena aumentada por suposta personalidade voltada ao crime.
Eles não são supostamente perigosos, pois convivem integrados à
sociedade. Por outro lado, os psiquiatras passam a utilizar o termo
psicopatia no próprio consultório. Angariam novos clientes. Antes,
apenas os loucos, agora também os anormais.
Aproximar o criminoso da população por meio da negação da ideia de
amor-erótico desvinculado da posse e da psicose não implica considerar
todos criminosos potenciais. Segundo Freud, o interesse do povo pelas
notícias sobre crimes se justifica a partir da identificação entre os
instintos do criminoso e os do resto da massa. A moral não destrói esses
instintos, que ficam presos no inconsciente, como afirmado. No entanto,
isso não impede que a internalização da moral religiosa ou de outros
subsistemas sociais signifique para o indivíduo a disposição eterna de
não cometer crimes ou determinado tipo de crime. O que não se pode é
etiquetá-lo como impotente para a prática de crimes. Isso seria utilizar
o conceito de psicopata ao reverso, pois teríamos que avaliar o sujeito
a partir de suas ações bondosas, já que sua mente é impenetrável.